segunda-feira, setembro 20, 2010

Crónicas

Ele diz-lhe: o que fazes agora vai condicionar, para o bem ou para o mal, a nossa relação no futuro. Ela encolhe os ombros, como querendo sacudir o incómodo, e replica sem pensar: a vida é minha e eu faço o que me parece melhor. Estão sentados ao princípio da noite a uma mesa de um café de bairro. Uma mulher sem idade esfrega indolentemente o vidro do balcão com um pano húmido. Não há mais clientes e ela só aguarda que aqueles dois se entendam no tempo de uma bica.
Ele ouve aquilo, levanta os olhos, espreita desgostoso por cima dos ombros dela a televisão muda no alto da parede do fundo da sala. Já lhe deu tanto de si, pensa... Decide ignorar o comentário dela, pergunta-lhe não és feliz comigo? Ela murmura sou... Então? Pergunta-lhe, perplexo. E ela: o que é que nos falta? Interroga-o, ou interroga-se. O resto da nossa vida?, diz ele, como fazendo uma sugestão óbvia. Sim, concorda ela. Mas acrescenta ele, o que estragarmos hoje, não terá conserto amanhã. Cai um silêncio. Ela baixa os olhos, os dedos nervosos brincam com o pacotinho de açúcar vazio.
Uma angústia toma conta deles. Desconfiada do futuro, ela não quer ser definitiva, quere-o mas não quer, ou não sabe o que quer. Num dia jura-lhe amor, no outro já não e não consegue comprometer-se, prefere calar-se, deixar tudo como está. Erguem a cabeça, recomeçam a falar os dois ao mesmo tempo. Ela, o que é que... Ele, olha... Calam-se, sorriem, ele diz-lhe para dizer primeiro. O que é que esperas de mim? Pergunta-lhe ela mais uma vez. Que sejas minha, que não deites fora aquilo que temos, responde-lhe ele novamente. Ela escuta-o, crispa os lábios, falta-lhe a voz.
Muito bem, diz ele, levantando-se, vou andando. Caminha para a porta. Espera! Ouve-a chamar, pára, volta-se, olham-se. Espera um pouco, pede-lhe, vai correr tudo bem, querido, vais ver. Ele oferece-lhe um sorriso desiludido. Não, não vai, diz, e sai para a noite.
A mulher do balcão espreita pelo canto do olho a cliente que ficou sozinha. Tem pena dela, sente uma ponta de frustração como se fosse consigo. Abana a cabeça com um suspiro, dá a volta ao balcão e vai à mesa perguntar-lhe se deseja mais alguma coisa. Responde-lhe que não obrigada. A mulher faz um assentimento com a cabeça, recolhe as chávenas de café e retira-se. Ela fixe o olhar no lugar onde ele estava há um minuto e sente na alma aquele lugar vazio. Vai correr tudo bem, repete as suas próprias palavras em surdina, para se convencer, vai correr tudo bem... sabendo que não vai.

Por: Tiago Rebelo, in Correio da Manhã

8 comentários:

Marta disse...

esta lindo*

Inês Barata disse...

Estou numa fase completamente igual a esta crónica.
Adoro a vida que tenho com ela, tudo o que nos rodeia, mas neste momento tenho muitas dúvidas do que sinto por ele.
São muitos anos de namoro, muitas histórias bonitas, muitos pesadelos, muitas emoções. Mas então o que é que falta agora? Já dei voltas e voltas à minha cabeça e a única conclusão que chego é que o que sinto por ele já não é o que era.
A grande diferença é que a rapariga da crónica teve coragem para falar, e eu, simplesmente não consigo. Magoa-me só de pensar que o vou magoar com as minhas palavras :( * (desculpa o desabafo)

suellen cristina disse...

Adorei o blog! Já estou seguindo! :)

qel disse...

adorei. acho que vou começar a ler mais o correio da manha *

Flor disse...

Adorei.. **,
Talvez comece a ler o Correio da manhã!!

disse...

Lindo

Kikas disse...

meu Deus.. dizer que está lindo não chega e é demasiado banal. adorei, mesmo :)

Ventania disse...

Parece-me que já vi isto, num futuro próximo qualquer...